16.8.05

A Idade Viril

Ler “A Idade Viril”, de Michel Leiris, foi uma daquelas experiências surpreendentes, que vira-e-mexe quem está aberto ao novo tem o prazer de desfrutar. Encontrava-me na Fnac quando o livro me encontrou. O retrato do senhor careca de capote e olhar grave, tendo ao fundo uma escada tendendo ao infinito, convidava à visitação, como um oráculo que dissesse: “se tiveres coragem de me abrir e ânimo de me perscrutar podes encontrar algo surpreendente”. Devo confessar que a impecável edição da Cosac&Naify já é, por si, um chamariz. Mas o que me chamou mesmo foi aquela foto, que mira o espectador sem o mínimo mimo, sem vontade alguma de se vender. E o que encontrei foi, de fato, surpreendente. Não há ali questões existenciais explícitas, mas uma expiação auto-biográfica que se abre a questões existenciais. Uma etnologia feita em percurso inverso, partindo do subjetivo para o objetivo, do particular ao universal. E quão espinhoso é gostar das confissões desse senhor peuqeno-burguês, de hábitos austeros e dissabores amorosos!!! O livro nasceu de uma reviravolta em sua vida, quando rompeu com os surrealistas, abandonou a psicanálise e partiu para uma expedição etnológica pela África. Depois disso, decidiu passar a limpo o que vivera até então, em uma série de romances auto-biográficos escritos do alto de seus 38-9 anos (ele viveria até quase os 90). Como ele mesmo afirma, “não seria essa atitude, antes de qualquer outra coisa, um meio cômodo de suprimir minhas obsessões? É o que penso agora ao fazer um pouco melhor o contorno de mim mesmo, empenhado em rejeitar minhas aparência enganosas e em reduzir tudo a suas justas proporções”.
Ali, certamente não achei eco para minhas vivências, posto que tenho formação muito diversa e não compartilho os dessabores amorosos e as frustrações sexuais do autor. Mas, mesmo assim, me identifiquei bastante e sei que, quem humano for, irá também se identificar, tanto pela profunda carga de sinceridade, quanto pela argúcia em tecer uma narrativa que une experiências reais a mitologias entranhadas no seio da civilização ocidental. Abaixo, dois trechos que me impressionaram pela pungência:

“De uma outra maneira, pode-se dizer que a crise da morte está em analogia com a convulsão, da qual nunca se tem propriamente consciência, por causa do colapso de todas as faculdades que ela implica e de seu caráter de retorno momentâneo ao caos. A bem conhecida tristeza após o coito tem a ver com a mesma vertigem inerente a toda crise sem desfecho, uma vez que tanto na aventura sexual como na morte o ponto culminante dessa crise é acompanhado de uma perda de consciência, ao menos parcial no primeiro caso.”

“Como outra lembrança do mar, há também a de minha partida de Marselha, quando estava casado e, pela primeira vez, esperava me livrar, fugindo, do que interiormente me atormentava. Partia então para o Egito, indo ruenir-me no Cairo àquele mesmo amigo com quem havia percorrido a zona de prostituição do Havre. Com o navio lentamente se afastando, vi o braço de água se formar e depois crescer entre o costado e o cais. Minuto de uma plenitude dilacerante que é impossível recuperar uma vez perdida aquela virgindade da primeira partida. Nele se tem a medida das coisas, a distância que nos separa delas, de modo que conseguimos por uma única vez, sentindo-nos intensamente firmes diante de tudo, ter nossa própria medida.”