6.8.07

Dois filmes muito fotográficos

Dois filmes que assisti neste fim-de-semana reforçam o caráter fotográfico do cinema. L´année dernière à Marienbad, de Alan Resnais, e Still Life, de Jia Zahng-Ke.
O primeiro pelo caráter estático dos personagens e da cenografia. A câmera viaja, mas os acontecimentos parecem truncados por um jogo de memória que anda em círculos e nunca parece se resolver, corredores que se estendem sem fim e não levam a lugar algum. Aqui a relação com a fotografia se dá pela memória, pela viagem no tempo, pela estaticidade dos personagens (o filme talvez dialogue até mais com a arte estatuária do que com a fotografia) e pela perspectiva acentuada das tomadas. Imaginava que Marienbad fosse um hotel gigantesco, mas descobri que mesmo o lugar onde se passa a história é imaginário, resultado de filmagens em diferentes espaços. Há inclusive trechos onde o roteiro brinca abertamente com a questão da fotografia, em um momento em que a personagem descobre que diversas fotos feitas no passado eram, assustadoramente, a mesma foto!
Já o filme chinês tem no próprio título (que é usado para divulgação internacional) uma referência direta à fotografia e à pintura, já que Still Life é o nome dado em inglês para o gênero de "natureza-morta" e a própria palavra Still é o que diferencia o cinema da fotografia, pois se o cinema é marcado pelo signo da mudança ininterrupta, a fotografia é marcada por ser sempre e ainda (still) o mesmo. Com relação à estética do filme, é impressionante a capacidade do diretor de mostrar com placidez e fria lentidão um acontecimento de extrema vitalidade transformadora (a construção da hidrelétrica de Três Gargantas). É como se a revolução pela qual passa a China atualmente, e que está transformando a vida de milhões de pessoas, fosse colocada sob o pano de fundo de questão milenares e até certo ponto atemporais. Em muitos instantes o cenário da cidade em ruínas, que logo seria inundada com a construção da usina, é um espaço para revelações surreais. Uma curiosidade é que o filme tem um documentário "irmão", que foi rodado no mesmo lugar, na mesma época, sobre o trabalho do pintor Liu Xiaodong, um dos artistas mais reconhecidos na cena da arte contemporânea chinesa, que também transformou a gigantesco acontecimento da construção das Três Gargantas em alimento para sua arte.
São dois filmes que trazem questões extremamente profundas. Uma coincidência é que tanto o filme de Resnais como o de Zahng-Ke levaram o Leão de Ouro no festival de Veneza, um em 1961 e o outro em 2005. Se um se insere no contexto da Nouvelle Vague, nasce em uma cena cultural bastante intelectualizada e se passa em um espaço de enorme sofisticação, o outro é fruto do cinema contemporâneo chinês, se passa em um cenário de ruínas e pobreza e mostra como a transformação de um país depende da transformação, muitas vezes maléfica, da vida de seus habitantes. Belo contraste. E viva a experimentação e a diversidade!

23.1.07

O cinema não morreu... Godard também não


Ele é tão odiado pelo público que chega a ser questionável até que ponto tem mesmo um público. Talvez se pudesse falar mais de fãs. Porque o cinema de Jean-Luc Godard não tem meio-termo, não é feito para agradar. Só gosta quem entende, e quem entende se torna fã, pois a profusão de pensamentos que ele provoca é digna de um grande filósofo ou de um grande poeta. Faz tempo que Godard está distante das rodinhas e celebridades do mundo do cinema, pois seu caminho foi radicalmente contrário ao da depravação mercadológica que parece ser o pecado capital de todo diretor de cinema. Ele resistiu e ainda não mordeu a maçã. Em Le Mepris, filme de 63, mostra na figura de Fritz Lang no que o “cinema de autor” tinha se transformado, obrigado pelas exigências do mercado, como arte marcada pelo caráter de mercadoria. Godard escolheu o caminho errado, para o mercado, para o êxito comercial de sua figura underground. Mas trilhou o caminho certo, para se tornar o grande crítico do cinema e sua máquina doida de ilusões, que vai pouco além de um entretenimento barato. O formato do cinema narrativo já está praticamente esgotado, não há mais volta. Mas a indústria do cinema insiste nisso, por que é o que o público consome. No capitalismo, em nome da ditadura do público, quanta barbárie já não se cometeu? E Godard vai caindo no esquecimento, entrando para os anais da história do cinema como um gênio do passado, aquele da Nouvelle Vague. “O Godard já morreu, não é mesmo?”, pergunta o jornalista imbecil na mesa de bar. Muitos já citaram Godard na mesa de bar. Seu fama é de cinema cabeça e quem tem cultura precisa conhecer. Quanta hipocrisia! A verdade é que seu cinema não é cabeça, é também sentido, é principalmente sentido, sensação, evocação. O que a palavra de um filósofo diz, ele nos mostra, sua lógica não é narrativa, é ensaística, ele não quer contar histórias, seu objeto é a História. Godard é um desafio para a lógica industrial do cinema, é o enfant terrible dos alternativos, aquele que não se enquadrou, porque não quis abrir mão de seu ideal em nome de um cheque polpudo e entrevistas mensais à imprensa. Ele sabe e já declarou isso inúmeras vezes: o cinema, o clássico cinema narrativo, morreu. Mas o cinema alternativo, o cinema que pensa o cinema, ainda tem muito fôlego pela frente e precisa se livrar daquele cadáver gigantesco. Por isso, ele segue criando, segue sonhando, tirando do ostracismo a força para sua reflexão. Imagino-o sentado em sua ilha de edição, sonhando com um destino diverso para o cinema no ocidente...

3.1.07

A Baudelaire


Oh jovem poeta de alma intempestuosa, permita-me dirigir a você as palavras de outro jovem poeta, também de alma libertária, porém mais tímida. Conheci teus versos por linhas tortas, tão incendiárias quanto as tuas embora mais melancólicas, de Walter Benjamin. Entendi o spleen, o arauto da modernidade e das flores doentias, o estilhaço, as vitrines, a moda, as passagens. Tua ignorância frente à fotografia, quanto tinha de sincera e sábia, quanta originalidade e vitalidade de uma crítica pulsante, grosseira, encrenqueira, desbragada. O que admiro em você é que, certo ou não, você sempre foi um convicto. Evocou a verdade e o mistério, apelou para a razão e para o haxixe. Você não apenas criou o conceito caótico de modernidade, como foi o primeiro homem verdadeiramente moderno. Paradoxal, abismal, profundo e extremamente rasteiro, cindido entre artista e erva daninha, um libertino mordaz em rima e métrica. Poliedro.
Com tristeza vejo o tempo enterrar teu ideal. Procuro um gênio como o teu nos dias atuais e encontro apenas poetas, críticos, panfletários, jornalistas, políticos, separados. Você era tudo em um só, era a modernidade em um só, se esforçou para viver até a última gota a experiência extrema de expressar-se no limite, sobre o fio da lâmina, que corta e expõe a carne.
Como um homem, um retrato, pode evocar tamanha enormidade? Vejo hoje nos teus olhos, naquela fotografia, seu rosto impassível, seu caráter irretocável, uma convicção em ser esguio. Logo a fotografia, que você repelia, deixou-nos teu retrato mais fiel, como um raio hipnótico lançado do fundo das trevas. Poeta divino, poeta diabólico, obscuro e cintilante, que nas noites de solidão vem visitar meu quarto, que suspira versos na minha imaginação. Vivo como você, no fremido da grande cidade, sob o olhar dos passantes apressados. Sou como Drummond, teu avesso, um gauche que se endireitou, um solitário eternamente apaixonado. Não saio na noite, não me arrisco na devassidão, não aspiro a sífilis, mas devoro o teu sangue sempre que volto a te visitar e tua bílis irriga minhas veias de uma paixão fulminante sempre que evoco tua alma em teu caixão. Divino ou diabólico, você conquistou o milagre da imortalidade. Vem visitar os homens tresloucados, os ébrios, os soturnos, os depravados! Vem incitar o ódio contra a passividade sem crítica! Vem despertar os homens da escuridão, instilar novos amores, fazer arder novas utopias! Benjamin intuiu mais em você que em Marx a porta aberta aos dilemas da modernidade. Cabe agora a nós voltar a você, como um oráculo que fornecerá a senha para superarmos a época que você nos legou. Nas palavras agressivas e panfletárias, nas críticas ácidas ou nos versos repletos de lirismo romântico ou frieza mórbida, sempre sentimos a sina de um homem sincero, que não temeu as palavras e nunca se furtou a dizer o que sentia. Uma verve intensa liga agora tua palavra a minha. Falta peito para assumir teu legado, mas tento, com essas humildes palavras que te louvam e te evocam!

de volta

Reparem na data da última postagem... fevereiro de 2006... faz tanto tempo!
Volto em 2007 com a intenção de reerguer este espaço de reflexão. Um dia um jornalista me disse que faltava coesão a este blog. Talvez estivesse se referindo a uma linha editorial, camisa de força que faz da profissão uma das mais agitadamente burocráticas que existem. Cada dia é uma nova história... "mas não se esqueça da linha editorial!", esbraveja o tédio balbuciante. É tão confortável quando temos regras a seguir, assim não precisamos exercitar a criatividade. Se tudo já nos foi dado, para que ir além?!?!
Não, este não é um espaço para jornalismo. Este não é um espaço para cercear a imaginação dos malucos e apontar quem deve usar a camisa de força. Definitivamente, este não é um espaço para a coerência, embora as idéias aqui apresentadas aspirem à persuasão.
Este é um espaço de efervescência lírica, de confissão pública; um diário aberto a quem quiser entrar na roda e também se divertir. Nele exponho as reflexões que me animam o espírito, mas, nem por isso, precisam servir para alguma coisa ou alguém. E quem quiser que conte outra!

7.2.06

O jornalista, o crítico e o filósofo

Um grande amigo e orientador da época da faculdade dizia uma frase que me marcou muito: "sem Hegel, Marx seria um mero jornalista". Embora fizesse graduação em jornalismo, sempre concordei em gênero, número e grau com a afirmação. Se, por um lado, Marx tinha em sua prosa toda força de um jornalista: era direto, didático, por vezes até panfletário. Por outro lado, foi exatamente sua formação em filosofia que lhe conferiu tamanha profundidade. O Manifesto de 1848, por exemplo, é um dos textos mais panfletários de Marx. Inflamado, direto, persuasivo, dirigido às massas proletárias. Mas cada vez que volto ao Manifesto sua genialidade se faz ainda mais manifesta e a profundidade da prosa vai revelando novas camadas de entendimento.
De nada adianta ser profundo e insuportável. Hegel atingiu o ápice da intelectualidade no pensamento ocidental. Porém, raras vezes seu pensamento sai do âmbito da filosofia. Marx foi tão profundo e radical no pensamento quanto Hegel . Entretanto, suas idéias ifluenciaram milhares, proporcionaram revoluções, tiveram conseqüências políticas graves.
Quando fazia jornalismo, confesso ter sentido repulsa pelo jornalismo. Cheguei a quase passar no mestrado em Ciências Sociais com uma proposta de leitura d'O Capital e até imagino que ter me formado em jornalismo foi um dos empecilhos para tanto.
Hoje, penso de forma muito diversa. A fotografia foi uma das maiores responsáveis por essa mudança... uma atividade que exige contato direto com o real, interação inevitável com pessoas, diálogo, uma relação de atrito com o fenomenológico. Trabalhando como jornalista e fotógrafo hoje, percebo que duas das principais virtudes de um bom texto vieram justamente de minha prática profissional: a abordagem direta e clara, e a abertura para que o discurso dos outros se apresente. Mas percebo que minha sólida formação teórica é que fornece o diferencial. Ela não está latente nas reportagens que publico, mas é a estrutura, como as vigas de um prédio, que o sustentam sem estar aparentes.
Tudo isso me veio à mente, por causa de um livro, chamado "Clement Greenberg e o debate crítico", no qual Greenberg e outros críticos dialogam em torno das questões da arte modernista. Com exceção ao texto de Leo Steinbergm, a maioria dos escritos giram em torno de questões abstratas, mal fundadas porque sem uma sustentação fenomenológica. A mais evasiva de todas é Rosalind Krauss, especializada na arte de dizer muito sem dizer nada. Isso sem falar nos textos de Greenberg, muito bem escritos, porém dogmáticos demais. Admiro mais Schapyro, Gombrich e Argan, argutos em suas análises muito bem diluídas nos fatos reais, em retomadas históricas de enorme erudição. O trabalho do crítico corre o risco de ficar em uma zona de indeterminação, como é o caso de Greenberg: não tem a profundidade da filosofia e não tem a fluência do jornalismo. E minha jornada, ainda recém-iniciada, no campo do jornalismo cultural sempre se debaterá entre a questão da fluência e da profundidade, entre jornalismo e filosofia, entre conhecimentos gerais e conhecimento teórico, fugindo sempre da crítica de caráter greenbergiano.

11.1.06

Miragem

Verdes olhos ela tem.
Sóbrios, me dão proteção;
sábios, me dão condução;
sinceros, miram e me têm.

14.12.05

Ignorância

A ignorância é o maior obstáculo da humanidade. E parece ser um obstáculo intransponível, já que muitos homens e mulheres, mesmo com possibilidades de ir além da ignorância, ficam preguiçosos ou estão por demais plantados em tradições superadas. Ignorância tem duplo sentido: pode significar o desconhecimento e pode significar a reação esbravejada de alguém que se defende atacando, porque não entende do que está sendo dito. Nas ruas, nas filas, nos coletivos, no trabalho, em toda parte somos alvo da ignorância alheia. O Ministério da Saúde adverte: conviver com pessoas ignorantes pode causar frustração profunda e desprezo permanente, mas nada que não seja aliviado por aquele sorriso interno de satisfação, que só quem sabe ser superior pode desfrutar. O pior de tudo é que o ignorante, na esmagadora maioria dos casos, é ignorante também de sua situação, ou porque não consegue ir além de sua existência mesquinha ou porque tem a concreta certeza de que é esperto e entendido naquilo que faz. Segundo a máxima atribuída a Sócrates ("só sei que nada sei"), todos somos ignorantes. Mas felizes aqueles que têm a humildade de reconhecer a limitação de seus conhecimentos e esperam viver para conhecer um pouquinho mais. Os sábios sabem o prazer de superar ignorâncias momentâneas e acrescentar um pouquinho mais de humildade à sua própria ignorância.

30.11.05

suspiro

volto em outro suspiro, para um poema que acabo de ler. E reproduzo:


Everness

Só uma coisa não há. É o olvido.
Deus, que salva o metal, salva a escória
e cifra em sua profética memória
as luas que serão e as que foram.
Já tudo está. Os milhares de reflexos
que entre os dois crepúsculos do dia
teu rosto foi deixando nos espelhos
e os que irá deixando ainda.
É tudo uma parte do diverso
cristal dessa memória, o universo;
não têm fim seus árduos corredores
e as portas que se fecham à tua passagem;
somente do outro lado do ocaso
verás o Arquétipos e os Esplendores

Jorge Luis Borges

Mais cosac

Primeiro foi o da Rosângela Rennó. Depois, Cris Bierrenbach e Antônio Saggese (para mim, apenas Sá, desde a época em que fui seu assistente...). Por fim, relutei mas comprei o volume do Luiz Braga. A coleção FotoPortátil da CosacNaify é sem comentários: a perfeita receita gráfica. Cada livro é uma obra à parte. Não perco meu tempo em descobrir qual o melhor. Apenas me limito a contar que o do Luiz Braga é o pior dos 4 já lançados. Penso que as fotos no velho formato, muitas repetidas, cansam. Era a oportunidade de inovar... ele deixou passar. Mas os outros não! Soberbas as edições de imagens do Sá e da Cris. Fantástico o conceito por trás dos 4 apagamentos de Rosângela Rennó. Agora, espero para conferir Eustáquio Neves e Raul Garcez.
Apenas aproveito para um aparte antes de findo o post: fiz uma inesquecível entrevista com Eustáquio, lá em Diamantina, onde ele atualmente mora. Quisera trazer mais detalhes da grande personalidade que conheci. Dessas que marcam. Mas ando correndo e um post é o tempo de um suspiro...

16.8.05

Cosac&Naify com promoções

Aproveitando o post abaixo, no qual comento sobre o livro do Michel Leiris, indico o site da Cosac&Naify, editora que vem se destacando pelo tratamento editorial e a escolha impecáveis dos títulos que publica. Amantes das artes e da boa literatura: entrem imediatamente na sessão de promoções!!!! De cara, encontro dois clássicos de Meyer Schapiro: "Impressionismo" está com 60% de desconto, "Mondrian: a dimensão humana da pintura", está com 50%. Monografia completa e indispensável sobre Joseph Beuys com 60%! Pela mesma pechincha, as ótimas coleções "Pelican" e "Arte Moderna: práticas e debates". Abaixo, na mesma página, outros tantos títulos com 20%. Ai, que dó de ter comprado pelo preço de tabela tantos livros que estão naquela vitrine de irresistíveis promoções! Aproveitei para fazer novas compras, claro. Acho que o leitor de bom gosto também não vai resistir...

A Idade Viril

Ler “A Idade Viril”, de Michel Leiris, foi uma daquelas experiências surpreendentes, que vira-e-mexe quem está aberto ao novo tem o prazer de desfrutar. Encontrava-me na Fnac quando o livro me encontrou. O retrato do senhor careca de capote e olhar grave, tendo ao fundo uma escada tendendo ao infinito, convidava à visitação, como um oráculo que dissesse: “se tiveres coragem de me abrir e ânimo de me perscrutar podes encontrar algo surpreendente”. Devo confessar que a impecável edição da Cosac&Naify já é, por si, um chamariz. Mas o que me chamou mesmo foi aquela foto, que mira o espectador sem o mínimo mimo, sem vontade alguma de se vender. E o que encontrei foi, de fato, surpreendente. Não há ali questões existenciais explícitas, mas uma expiação auto-biográfica que se abre a questões existenciais. Uma etnologia feita em percurso inverso, partindo do subjetivo para o objetivo, do particular ao universal. E quão espinhoso é gostar das confissões desse senhor peuqeno-burguês, de hábitos austeros e dissabores amorosos!!! O livro nasceu de uma reviravolta em sua vida, quando rompeu com os surrealistas, abandonou a psicanálise e partiu para uma expedição etnológica pela África. Depois disso, decidiu passar a limpo o que vivera até então, em uma série de romances auto-biográficos escritos do alto de seus 38-9 anos (ele viveria até quase os 90). Como ele mesmo afirma, “não seria essa atitude, antes de qualquer outra coisa, um meio cômodo de suprimir minhas obsessões? É o que penso agora ao fazer um pouco melhor o contorno de mim mesmo, empenhado em rejeitar minhas aparência enganosas e em reduzir tudo a suas justas proporções”.
Ali, certamente não achei eco para minhas vivências, posto que tenho formação muito diversa e não compartilho os dessabores amorosos e as frustrações sexuais do autor. Mas, mesmo assim, me identifiquei bastante e sei que, quem humano for, irá também se identificar, tanto pela profunda carga de sinceridade, quanto pela argúcia em tecer uma narrativa que une experiências reais a mitologias entranhadas no seio da civilização ocidental. Abaixo, dois trechos que me impressionaram pela pungência:

“De uma outra maneira, pode-se dizer que a crise da morte está em analogia com a convulsão, da qual nunca se tem propriamente consciência, por causa do colapso de todas as faculdades que ela implica e de seu caráter de retorno momentâneo ao caos. A bem conhecida tristeza após o coito tem a ver com a mesma vertigem inerente a toda crise sem desfecho, uma vez que tanto na aventura sexual como na morte o ponto culminante dessa crise é acompanhado de uma perda de consciência, ao menos parcial no primeiro caso.”

“Como outra lembrança do mar, há também a de minha partida de Marselha, quando estava casado e, pela primeira vez, esperava me livrar, fugindo, do que interiormente me atormentava. Partia então para o Egito, indo ruenir-me no Cairo àquele mesmo amigo com quem havia percorrido a zona de prostituição do Havre. Com o navio lentamente se afastando, vi o braço de água se formar e depois crescer entre o costado e o cais. Minuto de uma plenitude dilacerante que é impossível recuperar uma vez perdida aquela virgindade da primeira partida. Nele se tem a medida das coisas, a distância que nos separa delas, de modo que conseguimos por uma única vez, sentindo-nos intensamente firmes diante de tudo, ter nossa própria medida.”

7.6.05

Tempo dilatado... tempo aprisionado

Hic Hodes, Hic Salta! Aqui estou, quase dois meses depois da última postagem neste diário público (que saboroso paradoxo!). Entre baladas e raladas, não tenho tido muito tempo de me dedicar a este espaço.
Uma das coisas mais marcantes que conheci nestes dias foi o trabalho do fotógrafo alemão Michael Wesely. Por um acaso. Fui atrás do site dele depois que fiquei sabendo de um projeto muito legal que ele e a brasileira Lina Kim tocaram dois anos para recuperar fotos de Brasília espalhadas por arquivos brasileiros e do exterior. Nada menos que 100 mil negativos foram vasculhados. Ali, a luz escreveu parte importante da história brasileira. E nós, pelo nosso secular descaso com a memória, deixando que o mofo e os fungos comessem parte de nosso passado. Um trabalho arqueológico, levado por dois artistas plásticos, do qual saltaram inúmeros fatos que habitam os desvãos do que nos chega hoje sobre Brasília. Nas imagens selecionadas, o monumento dá lugar ao humano, o concreto dá lugar ao orgânico e a epopéia dá lugar à crônica. Por que não nos disseram na escola dos candangos? Das vilas de imigrantes, do comércio local, de peões trabalhando ou em raros momentos de folga, dos prédio desnudos em vergalhões monumentais? O trabalho culminou com uma exposição durante a comemoração de 45 anos da capital federal. Um presente de incalculável valor simbólico.
Foi preciso mesmo que mais um alemão se apaixonasse pelo Brasil e doasse uma dose de sua cultura de metódico cuidado com a memória para que compreendessemos melhor nossa própria identidade. Wesely já havia estado no Brasil fotografando em outras tantas ocasiões. Seu trabalho não tem ligação direta com o resgate dos arquivos fotográficos. Quando descobri seu site, tive uma grata surpresa. Ele trabalha com imagens captadas em períodos dilatados de tempo. Mais uma vez salta a importância de ser metódico. Pois, para desenvolver câmeras adequadas à sua busca, Wesely certamente precisou acumular muito conhecimento e paciência. Imagine um pinhole tão bem pensada que o furo permita grande riqueza de detalhes em exposições que vão de 12 horas até anos. Como no arquivo resgatado de Brasília, o foco está no tempo, mas o tempo dilatado de suas fotos traz um outro tipo de documentarismo. Todos os ensaios do site são impressionantes. Alguns, especialmente, me chamaram muitíssimo a atenção. Um deles feito com tulipas. O mesmo ramalhete dentro do vaso foi captado em quatro imagens de longa duração, que mostram o decrepitar das flores em contraposição à rigidez do ambiente. Outro ensaio interessante está no registro das transformações ocorridas em praças da extinta Alemanha Oriental. São espaços que tiveram suas identidades completamente trasnformadas em questão de meses. E o artista aprisiona as mudanças ocorridas em mais de um ano em apenas uma imagem estática. Que paradoxo mais rico de implicações! O impacto dessas fotos consideravelmente ampliadas deve estrondoso. O efêmero constrasta com o estático. O que muda constantemente deixa o negativo menos exposto do que o que permanece por mais tempo enquanto a foto é feita. Um fotodocumentarismo muito bem sacado e executado, que foge do literal e, por isso mesmo, oferece uma mediação mais completa para entendermos o real.
O trabalho mais recente de Wesely foi feito sob encomenda do MoMA. O artista foi incumbido de registrar a construção da nova sede do museu em Manhattan, evento que durou cerca de três anos. As câmeras que Wesely armou em diversos pontos de vista traçam um panorama das transformações. Está tudo ali. Três anos transcorridos sobre a prata da mesma película. A história sensibilizando o negativo e o artista captando a história.

15.4.05

Sabiá

não vai ser em vão
que fiz tantos planos de me enganar
como fiz enganos de me encontrar
como fiz estradas de me perder
fiz de tudo e nada de te esquecer